Publicado por Luiz Mário Moutinho
A Lei de Plano de Saúde, Lei nº 9.656/98, não deu início a uma nova atividade econômica. Quando o novel ingressou no mundo jurídico já havia uma realidade socioeconômica, até então regida pela legislação civil e pelos normativos infralegais oriundos do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP, sobre a qual ele iria incidir, impondo transformação na esfera de interesses das pessoas a que ela se refere, Estado, operadoras de planos de saúde e usuários.
Logo após a publicação da lei, a Confederação Nacional de Saúde - Hospitais e Estabelecimentos e Serviços - CNS - ingressou no STF, com uma Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade, questionando a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei 9.656/98 e da MP 1.730/98, que houvera feito modificações naquela.
O olhar da Suprema Corte sobre a realidade envolvendo usuários e operadoras de planos de saúde ficou registrado naquela ação, mesmo considerando a objetividade do processo constitucional, e mais especificamente as ações diretas de inconstitucionalidade, onde, segundo alguns doutrinadores, não se discutem fatos, ante a ausência de partes e de litígio.
O autor da medida cautelar sustentou que a lei e a medida provisória questionadas não observaram os princípios de razoabilidade e proporcionalidade em virtude da indevida transferência do dever do Estado de prover a saúde para a iniciativa privada.
Ainda segundo a autora da ação, a pretendida universalização da assistência à saúde pela iniciativa privada iria culminar por, em uma só tacada, inviabilizar o segmento e prejudicar seriamente o consumidor.
Entendeu o autor da ADI que a cobertura legal obrigatória das doenças relacionadas no Código Internacional de Doenças corresponde a todas as enfermidades conhecidas pela ciência humana e que as poucas exclusões previstas na lei põem em risco a viabilidade das operadoras.
Como se evidencia, naquela oportunidade, houve um debate sobre a natureza suplementar da assistência à saúde prestada pelas operadoras e ainda uma análise, mesmo que superficial, sobre o risco econômico e financeiro decorrente da ampliação de cobertura proposta pela lei atacada, Lei de Plano de Saúde.
A Corte acolheu o voto do relator e entendeu que a regra do artigo 196 da CF/88 é programática, e os diplomas legais atacados (Lei. 9.656/98 e a MP MP 1.730/98) não colidiram com a regra constitucional, pois, veio regulamentar a forma pela qual essa delegação se opere.
Entendeu, ainda, que o artigo 197 do Texto Constitucional é claro ao estabelecer que cabe ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle sobre ações e serviços de saúde, inclusive a execução, que pode ser feita diretamente pelo Estado ou através de pessoa jurídica de direito privado.
Ao regulamentar a forma pela qual essa delegação opera, por meio de lei, nela não se vislumbra nenhuma inconstitucionalidade em face do perceptivo que atribui ao Estado observância ao princípio de que a saúde é direito de todos e seu dever, disse o relator.
Naquela oportunidade, havia um reclamo da sociedade no que se refere às restrições substanciais impostas pelas operadoras de planos de saúde, com frustração da confiança dos usuários que, não raras vezes, tinham os pedidos de cobertura negados, especialmente naqueles atendimentos mais caros.
Este dado de realidade interferiu na convicção da Suprema Corte no que se refere à necessidade de o Estado regular os serviços privados de assistência suplementar à saúde. No voto está posto que o texto legal atacado (Lei 9.656/98) criou um Sistema pelo qual a empresa pode celebrar seus planos, desde que compatibilizados com os parâmetros definidos em lei. É o que se dá, no caso, à medida que tais contratos não podem mais se limitar a cobrir os serviços à gosto da operadora, para que não se repita o que ocorria no passado, possibilitando, assim, que todas as doenças sejam cobertas nas respectivas ofertas.
A análise do alegado risco de desequilíbrio econômico do sistema privado de assistência à saúde decorrente da ampliação das coberturas também foi feita no julgado da ADI mencionada. Neste particular colhe-se do voto do relator a seguinte passagem:
Como o mecanismo de operação desse mercado tem por base o preço cobrado do usuário, o qual, segundo as mesmas informações, permite suficiente margem de lucro, fica difícil saber quem tem razão, notadamente porque as prestadoras de serviços podem ter esses preços revistos pelo chamado CONSELHO DE SAÚDE SUPLEMENTAR, órgão do Ministério da Saúde, de que participam diversos segmentos da sociedade, inclusive nele estando integrada a própria requerente (artigo 35-B, inciso II, letra g da MP 1908-18/99).
Ainda na perspectiva do equilíbrio econômico, o autor da ação constitucional profetizou que a prevalecer as regras ora estipuladas e, à medida que os preços encarecerem, os planos de saúde ficarão restritos aos segmentos sociais mais bem aquinhoados, o que levará suas carteiras a uma diminuição substancial.
Com a prudência que se exige de todo magistrado, o Ministro respondeu que a resposta a essa preocupação só poderá ser mensurada com o tempo. E arrematou: ademais, as empresas não estão sendo compelidas a celebrar esse ou aquele contrato, somente o fazendo se, como negócio, as operadoras lhes forem convenientes.
O STF entendeu, em resumo, que todas as doenças conhecidas devem ser cobertas pelas operadoras e que esta ampliação não colide com a natureza suplementar do serviço privado de assistência à saúde, pois o objetivo é deixar de fora a opção que tinha o empresário de excepcionar alguns tipos de doença cujo tratamento importasse dispêndios mais elevados.
Em suma, na visão do Supremo Tribunal Federal, a natureza suplementar do serviço prestado pelas operadoras não deixou de ser observada pelo fato de a Lei estabelecer uma cobertura para todas as doenças conhecidas pela ciência e, quanto ao impacto econômico-financeiro, pontuou a Corte, ainda que de passagem, que a margem de lucro existente suportaria a inovação e o eventual risco sistêmico poderia ser controlado por órgão estatal competente para revisar as contraprestações pagas pelos usuários.